Abordagem

Os principais objetivos do tratamento são:

  • Restauração dos deficits de volume

  • Resolução da hiperglicemia e cetose/acidose

  • Correção das anormalidades eletrolíticas (o nível de potássio deve ser >3.3 mmol/L [>3.3 mEq/L] antes do início da insulinoterapia; o uso da insulina em um paciente com hipocalemia pode causar paralisia respiratória, arritmias cardíacas e morte)

  • Tratamento de eventos precipitantes (por exemplo, sepse, infarto do miocárdio, AVC) e prevenção de complicações.

Deve-se enfatizar que o sucesso do tratamento necessita de monitoramento frequente dos parâmetros clínicos e laboratoriais para alcançar os critérios de resolução. Uma terapia individualizada é necessária com base nesses resultados, pois a apresentação da CAD pode ser muito variável.[3]​ Deve-se manter um protocolo de tratamento e um fluxograma para registrar os estágios do tratamento e os dados laboratoriais.[1][52][53][54]

Tratamento inicial e de suporte

A maioria dos pacientes se apresenta no pronto-socorro onde o tratamento deve ser iniciado. Há várias etapas importantes que devem ser seguidas no manejo inicial:

  • A fluidoterapia deve ser iniciada imediatamente depois das avaliações laboratoriais iniciais.

  • Na primeira hora de fluidoterapia deve-se administrar uma infusão de solução isotônica a 0.9% de cloreto de sódio à taxa de 1.0 a 1.5 L/hora.

As indicações para internação na unidade de terapia intensiva (UTI) são a instabilidade hemodinâmica ou choque cardiogênico, estado mental alterado, insuficiência respiratória, acidose grave e coma hiperosmolar.

O diagnóstico de instabilidade hemodinâmica deve ser feito por meio da observação de hipotensão e sinais clínicos de má perfusão tecidual, incluindo oligúria, cianose, membros frios e estado mental alterado. Após a internação na UTI, os acessos arteriais e venosos centrais são necessários, com oximetria percutânea contínua. A oxigenação e a proteção das vias aéreas são críticas. Intubação e ventilação mecânica são comumente necessárias, com monitoramento constante dos parâmetros respiratórios. A aspiração nasogástrica sempre é realizada devido à frequente ocorrência de íleo paralítico e ao perigo de aspiração.


Intubação traqueal - Vídeo de demonstração
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Como inserir um tubo traqueal em adulto usando um laringoscópio.



Ventilação com ressuscitador manual ("bolsa-válvula-máscara") - Vídeo de demonstração
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Como usar um aparato reanimador manual autoinflável para fornecer suporte ventilatório a adultos. Vídeo de demonstração da técnica de duas pessoas.


O manejo inicial nos pacientes hemodinamicamente instáveis inclui a ressuscitação fluídica para corrigir a hipovolemia e a hipotensão, o monitoramento contínuo e a terapia vasopressora sob supervisão de um especialista.[1][58]

Fluidoterapia

O deficit de fluido é de, em média, 6 litros.[59] Após o manejo inicial, a fluidoterapia contínua deve ser iniciada. A meta é a restauração da perda de fluidos. A correção de deficits de fluidos deve ser realizada de forma gradual ao longo de 12-24 horas, pois a correção demasiadamente rápida pode resultar no desenvolvimento de edema cerebral no paciente.[60][61] Após a terapia inicial com 1.0 a 1.5 L de solução isotônica (NaCl a 0.9%) durante a primeira hora de internação em todos os pacientes, o estado de desidratação deve ser clinicamente avaliado. A presença de hipotensão ortostática ou hipotensão supina com membranas mucosas ressecadas e turgor cutâneo diminuído indicam uma grave depleção de volume, que deve ser tratado com a infusão de NaCl a 0.9% em uma taxa de 1.0 L/h até que os sinais da depleção de volume grave sejam revertidos.[15][62] Esses pacientes continuam a receber a fluidoterapia para depleção de volume leve, com base no nível de sódio sérico corrigido.

Em pacientes com depleção de volume leve (caracterizada pela ausência de hipotensão), o nível de sódio sérico corrigido deve ser avaliado. A equação das unidades do sistema internacional (SI) é: sódio corrigido (mmol/L) = sódio medido (mmol/L) + 0.016 ([glicose (mmol/L) × 18]-100). A equação das unidades convencionais é: sódio corrigido (mEq/L) = sódio medido (mEq/L) + 0.016 (glicose [mg/dL] - 100).

  • Em pacientes hiponatrêmicos: iniciar com NaCl a 0.9% de 250-500 mL/hora e quando a glicose plasmática atingir 11.1 mmol/L (200 mg/dL), a fluidoterapia deve ser alterada para dextrose a 5% com NaCl a 0.45% de 150-250 mL/hora.[1][15][63]

  • Em pacientes hipernatrêmicos ou eunatrêmicos, recomenda-se NaCl a 0.45% de 250-500 mL/hora, e quando a glicose plasmática atingir 11.1 mmol/L (200 mg/dL), deve ser alterada para dextrose a 5% com NaCl a 0.45% de 150-250 mL/hora.[1][15][63]

Insulinoterapia

A meta é uma redução regular mas gradual da glicose sérica e osmolalidade plasmática por uma insulinoterapia de baixa dose, a fim de reduzir o risco de complicações no tratamento, incluindo hipoglicemia e hipocalemia.

Os pacientes devem receber uma infusão intravenosa contínua de insulina regular após a exclusão de hipocalemia (isto é, o nível de potássio deve ser >3.3 mmol/L [>3.3 mEq/L]) antes do início da terapia com insulina).[1]​​​ Este é o padrão de assistência nos pacientes gravemente enfermos e mentalmente obnubilados com CAD.[3]​ Dois esquemas alternativos de baixas dosagens são recomendados pela American Diabetes Association (ADA).[1] A primeira opção é uma infusão intravenosa contínua de insulina regular na dose de 0.14 unidades/kg/hora (aproximadamente 10 unidades/hora em um paciente de 70 kg) sem bolus inicial.[1] Isto baseia-se em estudos que demonstram que a utilização de insulina regular em baixas doses administrada por infusão intravenosa é suficiente para o tratamento da CAD, desde que a dose seja superior a 0.1 unidade/kg/hora. O regime alternativo envolve uma dose inicial intravenosa em bolus de 0.1 unidade/kg, seguida por uma infusão contínua a uma dose de 0.1 unidade/kg/hora.[59] Esses protocolos de insulinoterapia de baixa dose diminuem a concentração da glicose plasmática na velocidade de 2.8 a 4.2 mmol/L/hora (50-75 mg/dL/hora).[1]

Se a glicose plasmática não diminuir em, no mínimo, 10% ou 2.8 mmol/L (50 mg/dL) na primeira hora de infusão de insulina, uma dose de 0.14 unidades/kg de insulina regular deve ser administrada em bolus intravenoso, e a taxa de infusão contínua de insulina deve ser mantida (0.1 unidades/kg/hora ou 0.14 unidades/kg/hora, dependendo do regime selecionado).[1][59] A injeção de insulina em uma escala móvel não é mais recomendada. Quando a glicemia está <11.1 mmol/L (200 mg/dL), a infusão pode ser reduzida para 0.02 a 0.05 unidade/kg/hora, quando a dextrose pode ser adicionada aos fluidos intravenosos.[1][59] A taxa de infusão de insulina (ou a concentração de dextrose) deve então ser ajustada para manter um nível de glicose plasmática entre 8.3 e 11.1 mmol/L (150-200 mg/dL).[1]

Pacientes com CAD grave (glicose plasmática >13.9 mmol/L [>250 mg/dL], pH arterial <7.00, bicarbonato sérico <10 mmol/L [<10 mEq/L]), hipotensão, anasarca (edema grave generalizado) ou doença crítica grave associada devem ser tratados com insulina regular intravenosa na UTI, utilizando o regime descrito acima.[1][64][65][66]

Os pacientes com CAD leve a moderada (glicose plasmática >13.9 mmol/L [>250 mg/dL], pH arterial de 7.00 a 7.30, bicarbonato sérico de 10-18 mmol/L [10-18 mEq/L]) que não seja complicada por infarto agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca congestiva, insuficiência hepática ou renal em estágio terminal, uso de esteroides ou gestação, podem receber insulina de ação rápida por via subcutânea como uma alternativa à insulina regular intravenosa (sem diferença significativa nos desfechos ao usar qualquer abordagem juntamente com o manejo hídrico agressivo para a CAD leve ou moderada).[3]​​[67][68][69] [ Cochrane Clinical Answers logo ] ​ Uma sugestão de protocolo seria uma injeção subcutânea inicial de insulina de ação rápida em uma dose de 0.3 unidade/kg, seguida por outra injeção subcutânea de 0.2 unidade/kg depois de 1 hora. Depois disso, eles devem receber 0.2 unidade/kg a cada 2 horas até que a glicose sanguínea esteja <13.9 mmol/L (<250 mg/dL). Nesse ponto, a dose de insulina deve ser diminuída pela metade, para 0.1 unidade/kg a cada 2 horas, até a resolução da CAD.[65] Os pacientes tratados com insulina subcutânea devem receber reposição de fluidos adequada, exames de glicemia à beira do leito frequentes e tratamento adequado das causas subjacentes para evitar a CAD recorrente.[3]​ A infusão intravenosa contínua de insulina regular deve, no entanto, continuar sendo a via de escolha em todos os pacientes com CAD por causa da meia-vida curta e da fácil titulação da insulina intravenosa. Isso é comparado ao início de ação tardio e à meia-vida prolongada da insulina administrada por via subcutânea. No entanto, se o tempo de espera por vagas na UTI for longo, ou onde os recursos médicos forem escassos, o uso de análogos da insulina no tratamento dos episódios leves ou moderados e descomplicados de CAD poderá ser considerado para os pacientes ambulatoriais, na enfermaria ou no pronto-socorro.[3]

[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Manejo da CAD em adultos. Abreviações: glicose sanguínea (GS); cetoacidose diabética (CAD); hora (h); via intravenosa (IV); via subcutânea (SC)Imagem criada pelo BMJ Knowledge Centre com base em Gosmanov AR, Gosmanova EO, Dillard-Cannon E. Management of adult diabetic ketoacidosis. Diabetes, Metabolic Syndrome and Obesity: Targets and Therapy. 2014;7:255-64. [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@57954d4f

Uma vez que a CAD se resolva e o paciente consiga tolerar a ingestão oral, a transição para a insulina subcutânea precisa ser iniciada. A ADA recomenda o uso de um protocolo de transição (pois isso está associado à redução da morbidade e dos custos) e informa que a administração de insulina basal é necessária de 2 a 4 horas antes de se interromper a insulina intravenosa para prevenir a recorrência da CAD e a hiperglicemia de rebote.[3]​ A ADA também aponta para evidências emergentes de que a administração de um análogo da insulina basal de baixa dosagem (0.15 a 0.3 unidades/kg), além da infusão intravenosa de insulina, pode reduzir a duração da infusão e a duração da internação hospitalar, ao mesmo tempo em que previne a hiperglicemia de rebote (sem um aumento do risco de hipoglicemia).[3]​ A insulina de ação intermediária ou prolongada é recomendada para uso basal, e a insulina de ação curta para o controle glicêmico prandial. Se o paciente tiver utilizado insulina para controlar o diabetes antes da CAD, a mesma dose poderá ser reiniciada. Do contrário, recomenda-se o seguinte esquema: uma dose diária total de insulina de 0.5 a 0.8 unidade/kg/dia, sendo 30% a 50% da dose diária total administrada como insulina basal de ação prolongada, geralmente à noite em dose única, e o restante da dose diária total em doses fracionadas de insulina de ação rápida antes de cada refeição.[1][65][66]​ A ADA menciona que a dose total diária de insulina subcutânea também pode ser calculada a partir da taxa de infusão de insulina nas 6 a 8 horas anteriores, quando níveis estáveis da glicemia tiverem sido atingidos.[3]

Terapia com potássio

A insulinoterapia e a correção da acidemia e hiperosmolalidade levam o potássio para dentro das células, podendo causar hipocalemia grave. A meta, portanto, é corrigir os deficits reais de potássio e, assim, prevenir complicações fatais da hipocalemia, incluindo a paralisia respiratória e disritmia cardíaca.

A insulinoterapia deve ser suspensa até o nível de potássio sérico atingir 3.3 mmol/L (3.3 mEq/L). Da mesma forma, caso o potássio plasmático fique abaixo de 3.3 mmol/L (<3.3 mEq/L) em qualquer momento durante o tratamento, a insulina deve ser suspensa, e o potássio deve ser reposto por via intravenosa. Em todos os pacientes com nível de potássio sérico <5.3 mmol/L (<5.3 mEq/L) e um débito urinário adequado >50 mL/hora, 20-30 mmol (20-30 unidades [mEq]) de potássio devem ser adicionados para cada litro de infusão para prevenir a hipocalemia causada pela insulinoterapia. Caso o nível de potássio seja >5.3 mmol/L (>5.3 mEq/L), a reposição de potássio não é necessária, mas o nível de potássio deve ser verificado a cada 2 horas.[1]

Terapia com bicarbonato

O uso do bicarbonato na CAD permanece controverso. A ADA informa que vários estudos não conseguiram mostrar nenhuma diferença na resolução da acidose ou no tempo até a alta em pessoas com CAD quando o bicarbonato foi usado, e geralmente ele não é recomendado.[3]​ Com o pH do sangue arterial >7.0, a administração de insulina bloqueia a lipólise e resolve a cetoacidose sem a necessidade da adição de bicarbonato. A administração da terapia com bicarbonato nesses pacientes pode resultar no aumento do risco de hipocalemia, na diminuição da captação tecidual de oxigênio e em edema cerebral.

A terapia com bicarbonato pode ser utilizada em pacientes adultos com pH do sangue arterial <7 na CAD, embora os dados sejam limitados.[70] Com base em estudos realizados em pacientes adultos com um pH de sangue arterial entre 6.9 e 7.0, 50 mmol de bicarbonato de sódio em 200 mL de água estéril com 10 mmol (10 mEq) de cloreto de potássio (KCl) podem ser administrados ao longo de 1 hora até que o pH esteja >7.0.

Em pacientes adultos com um pH <6.9, recomenda-se que 100 mmol de bicarbonato de sódio em 400 mL de água estéril (uma solução isotônica) com 20 mmol (20 mEq) de KCl sejam administrados na velocidade de 200 mL/hora por 2 horas até que o pH esteja >7.0. Para monitorar o tratamento, o pH venoso é suficiente e deve ser checado no mínimo a cada hora nessa configuração. O tratamento deve ser repetido a cada 2 horas até que o pH esteja >7.0.

A terapia com bicarbonato, da mesma forma que a insulinoterapia, diminui o potássio sérico; portanto, KCl deve ser adicionado à infusão isotônica de bicarbonato.[1][71][Figure caption and citation for the preceding image starts]: Algoritmo para o manejo de potássio e bicarbonatoModificado de: Kitabchi AE, Umpierrez GE, Miles JM, et al. Diabetes Care. 2009,32:1335-43 [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@596737aa

Terapia com fosfato

Apesar de os deficits corporais totais de fosfato na CAD estarem em média em 1.0 mmol/kg do peso corporal, o fosfato sérico muitas vezes está normal ou aumentado na apresentação, mas diminui com a insulinoterapia. Estudos prévios não conseguiram demonstrar nenhum efeito benéfico da reposição de fosfato em pacientes com CAD. Portanto, a reposição de rotina do fosfato não é recomendada.

No entanto, para evitar disfunção cardíaca, respiratória e musculoesquelética, uma terapia cuidadosa de fosfato pode ser indicada em pacientes com disfunção cardíaca (por exemplo, com sinais de disfunção ventricular esquerda), anemia sintomática ou depressão respiratória (por exemplo, diminuição da saturação de oxigênio) e em pacientes com hipofosfatemia confirmada (concentração sérica de fosfato <1.0 mg/dL).[1]

Monitoramento da terapia

O monitoramento dos parâmetros respiratórios e do estado hemodinâmico é essencial em pacientes hemodinamicamente instáveis.

Após a avaliação laboratorial inicial, a glicose sérica e os eletrólitos são medidos no mínimo a cada hora; o cálcio, o magnésio e fosfato são averiguados a cada 2 horas, e a ureia, creatinina e cetonas a cada 2-6 horas, dependendo do quadro clínico do paciente e sua resposta à terapia.

As medições de beta-hidroxibutirato (BOHB) sérico podem ajudar a monitorar a resposta ao tratamento para CAD. No entanto, na ausência de um medidor capaz de medir a BOHB, a medição de corpos cetônicos não é recomendada. A BOHB é convertida em acetoacetato, que é detectado por método de nitroprussiato, durante o tratamento da CAD. Portanto, o aumento do acetoacetato durante o tratamento da CAD pode ser confundido com um indicativo de agravamento da cetonemia.

As evidências sugerem o monitoramento do bicarbonato, da anion gap e do pH para avaliar a resposta ao tratamento. Um fluxograma com a classificação desses achados, assim como estado mental, sinais vitais, dose de insulina, débito urinário, terapias de fluido e eletrólitos, permite analisar com facilidade a resposta ao tratamento e a resolução de crises. A medição do perfil metabólico durante o tratamento para CAD oferece informações dinâmicas sobre as alterações na função renal e no nível de sódio.

O manejo e o monitoramento devem continuar até a resolução da CAD. Os critérios para a resolução são:[1]

  • glicose plasmática <11.1 mmol/L (<200 mg/dL; nesse ponto, a insulina pode estar reduzida em 50%)

  • bicarbonato sérico >18 mmol/L (>18 mEq/L)

  • pH venoso >7.3

  • anion gap <10.


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