Afasia é um comprometimento adquirido da linguagem que afeta a compreensão e produção de palavras, frases e/ou discurso. Ela se caracteriza tipicamente por erros na evocação ou escolha de palavras, incluindo:
Parafasias semânticas (substituição de uma palavra por outra semanticamente relacionada, por exemplo, chamar um cavalo de vaca)
Parafasias fonêmicas (substituição de um ou mais sons na palavra, por exemplo, chamar uma faca de vaca ou usar uma palavra inexistente, como gaca)
Neologismos (uma série de sons que não formam uma palavra e não são semelhantes à palavra-alvo)
Circunlocuções (por exemplo, chamar um cavalo de um animal que você monta com uma sela).
Tipicamente, tanto a linguagem oral quanto a escrita são afetadas; porém, ocasionalmente, apenas uma modalidade de percepção ou ação é comprometida.
Definições: afasia, disartria e apraxia
É importante diferenciar afasia de disartria ou apraxia.
Afasia é um comprometimento seletivo da fala ou dos processos cognitivos subjacentes à linguagem. Indivíduos com demência frequentemente apresentam problemas na linguagem, mas também têm, pelo menos, deficits igualmente graves na memória episódica, nas habilidades visuoespaciais e/ou nas funções executivas (por exemplo, organização, planejamento, tomada de decisões).
Disartria é um distúrbio adquirido que envolve a produção da fala, decorrente de fraqueza, lentidão, amplitude de movimento reduzida ou deficiência do tempo e da coordenação dos músculos da mandíbula, lábios, língua, palato, pregas vocais e/ou músculos respiratórios (os articuladores da fala).
Apraxia da fala é um comprometimento do planejamento e da programação motora dos articuladores da fala que não pode ser atribuído à disartria.
Esses 3 distúrbios podem coexistir, mas frequentemente ocorrem em separado. Eles podem ser diferenciados pela avaliação da linguagem (testes de compreensão de palavras e frases, nomes, repetição, fala espontânea, leitura e escrita), além de testes de articulação (testes para avaliar a força, coordenação, velocidade e amplitude de movimentos dos músculos da articulação da fala) e programação motora da fala.
Classificação vascular das afasias
A classificação mais comum de afasia divide o distúrbio em síndromes clínicas de deficits frequentemente concomitantes que refletem o território vascular afetado no acidente vascular cerebral (AVC).[1]Damasio AR. Aphasia. N Engl J Med. 1992 Feb 20;326(8):531-9.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/1732792?tool=bestpractice.com
[2]Hillis AE. Aphasia: progress in the last quarter of a century. Neurology. 2007 Jul 10;69(2):200-13.
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Por exemplo, o teste de rastreamento Western aphasia battery e o teste de Boston para diagnóstico de afasia foram desenhados para distinguir síndromes vasculares.[3]Kertesz A. Western aphasia battery. New York, NY: Grune and Stratton; 1982.[4]Goodglass H, Kaplan E. The Boston diagnostic aphasia examination. Philadelphia, PA: Lea and Febiger; 1972. A relação entre os sintomas e o território vascular que é afetado nem sempre é consistente, mas ela é mais confiável nas situações agudas que nas crônicas.[5]Ochfeld E, Newhart M, Molitoris J, et al. Ischemia in Broca area is associated with Broca aphasia more reliably in acute than in chronic stroke. Stroke. 2010 Feb;41(2):325-30.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2828050
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20044520?tool=bestpractice.com
A afasia de Broca é caracterizada por uma emissão de fala não fluente, mal-articulada e agramática (tanto o discurso espontâneo quanto a repetição), com uma compreensão de palavras relativamente preservada. Os indivíduos com afasia de Broca frequentemente têm dificuldade de entender frases sintaticamente complexas ou semanticamente reversíveis (por exemplo, "toque no nariz depois de tocar no pé"), mas não têm muitos problemas para entender frases simples e semanticamente não reversíveis. Esse conjunto de síndromes geralmente está associado a uma isquemia ou outras lesões do córtex frontal posteroinferior esquerdo, na distribuição da divisão superior da artéria cerebral média (ACM) esquerda.
A afasia de Wernicke é caracterizada pela emissão de fala e repetição fluentes, mas sem sentido, com má compreensão de palavras e frases. Ela decorre tipicamente de uma isquemia no córtex temporal posterossuperior, na distribuição da divisão inferior da ACM esquerda.
A afasia de condução é caracterizada pelo comprometimento desproporcional da repetição de palavras associado a fala fluente. Ela é tipicamente decorrente de isquemia que afeta o lobo parietal inferior.
A afasia transcortical é caracterizada pela repetição relativamente preservada. A afasia transcortical sensitiva geralmente é resultante de isquemia envolvendo a zona de fronteira entre os territórios da ACM esquerda e da artéria cerebral posterior (ACP) esquerda.
A afasia transcortical motora geralmente é resultante de isquemia envolvendo a zona de fronteira entre os territórios da ACM esquerda e da artéria cerebral anterior (ACA) esquerda.
A afasia transcortical mista resulta de lesões no território da ACM esquerda e da ACP esquerda, em combinação com o território da ACM esquerda e da ACA esquerda. A repetição é a habilidade primária da linguagem.
A afasia anômica é caracterizada pela incapacidade de evocação nominal e pelo dano tecidual no giro angular ou no córtex temporal posterior médio/inferior.
A afasia global denota grave comprometimento em todos os aspectos da fala; a área de isquemia frequentemente envolve as áreas de linguagem anterior e posterior (áreas de Broca e Wernicke).[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Área de Broca, área de Wernicke e o giro angular.Criado pelo BMJ Knowledge Centre [Citation ends].[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Áreas limítrofes entre os territórios da artéria cerebral anterior, média e posterior.Criado pelo BMJ Knowledge Centre. [Citation ends].
Classificação da fluência das afasias
Fluência é um termo multidimensional que se refere à melodia, prosódia (padrão de acentuação tônica e entonação), comprimento da frase, velocidade da fala, gramaticalidade, esforço e precisão de articulação da fala espontânea. Ela é frequentemente testada pedindo ao paciente para descrever uma imagem complexa que representa várias atividades.
Pacientes com afasia fluente (fala melodiosa, sem esforço e bem-articulada, que pode ter pouco conteúdo) tendem a ter lesões posteriores no hemisfério esquerdo, ao passo que pacientes com afasia não fluente (fala mal-articulada e com esforço, com conteúdo mais preciso que os sons produzidos) tendem a apresentar lesões na região anterior do cérebro. Entretanto, uma vez que fluência é um termo multidimensional baseado em fatores que podem se dissociar (precisão gramatical, velocidade da fala, prosódia, esforço, precisão articulatória, hesitações), frequentemente ela é difícil de julgar. Um paciente pode ser fluente em uma dimensão e não fluente em outra. Portanto, frequentemente existe discórdia entre duas pessoas no julgamento da fluência de um indivíduo afásico.
As afasias fluentes normalmente são decorrentes de lesões posteriores ao sulco central:
Afasia de Wernicke, com discurso fluente e com jargões e má compreensão
Afasia transcortical sensitiva, caracterizada por capacidade de repetição bem preservada no contexto de má compreensão e fala proposicional fluente, mas sem sentido
Afasia de condução, na qual a fala fluente e espontânea é preservada, mas a repetição é comprometida
Afasia anômica, com deficit de encontrar palavras e nomear coisas.
Afasias não fluentes englobam as regiões anteriores ao sulco central:
Afasia de Broca
Afasia transcortical motora, com dificuldade em iniciar e organizar respostas, mas com repetição relativamente preservada
Afasia transcortical mista, em que a ecolalia (repetição) é a única habilidade preservada da linguagem
Afasia global, caracterizada por grave comprometimento na fala e na compreensão e por expressões vocais estereotípicas.
Distúrbios que afetam apenas a leitura são referidas como tipos de alexia. Os que afetam apenas a escrita são tipos de agrafia.[6]Black S, Behrmann M. Localization in alexia. In: Kertesz A, ed. Localization and neuroimaging in neuropsychology. San Diego, CA: Academic Press; 1994:152-84.[7]Hillis AE, Rapp BC. Cognitive and neural substrates of written language comprehension and production. In: Gazzaniga M, ed. The new cognitive neurosciences. 3rd ed. Cambridge, MA: MIT Press; 1994:755-88.
Uma importante variável que complica essas associações de deficits é a notável reorganização das relações estrutura-função que frequentemente ocorre depois de lesões cerebrais, como partes não danificadas do cérebro assumindo funções da parte danificada com o tempo, resultando na recuperação até mesmo das mais graves afasias (geralmente somente depois de um tratamento fonoaudiológico adequado).
Classificação da afasia em via ventral versus dorsal
Via ventral: uma via de processamento que oferece suporte à interface entre redes fonológicas-sensoriais com rede conceitual-semântica ("entre o som e o significado"), de giros temporais transversos bilaterais ao longo do córtex temporal esquerdo, com conexões de disseminação a representações semânticas bilateralmente. Lesões na via ventral interrompem o fluxo da palavra, assim como a compreensão da frase.[8]Hickok G, Poeppel D. The cortical organization of speech processing. Nat Rev Neurosci. 2007 May;8(5):393-402.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17431404?tool=bestpractice.com
[9]Saur D, Kreher BW, Schnell S, et al. Ventral and dorsal pathways for language. Proc Natl Acad Sci U S A. 2008 Nov 18;105(46):18035-40.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2584675
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19004769?tool=bestpractice.com
Via dorsal: uma via de processamento que oferece suporte à interface entre redes fonológicas-sensoriais e redes articulatória-motoras ("entre o som e a fala"), de giros temporais transversos bilateralmente ao longo do giro supramarginal e giro frontal inferior. Lesões na via dorsal interrompem a repetição de palavra e frase, produção de frase gramatical e articulação da fala.[8]Hickok G, Poeppel D. The cortical organization of speech processing. Nat Rev Neurosci. 2007 May;8(5):393-402.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17431404?tool=bestpractice.com
[9]Saur D, Kreher BW, Schnell S, et al. Ventral and dorsal pathways for language. Proc Natl Acad Sci U S A. 2008 Nov 18;105(46):18035-40.
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Tratamento de acompanhamento
Depois de identificar e tratar a causa subjacente da afasia, como AVC agudo ou encefalite herpética, os pacientes podem apresentar afasia residual. Esses indivíduos afásicos se beneficiam do encaminhamento a um fonoaudiólogo especializado em terapia de afasia.
O tratamento deve ser individualizado para abordar os deficits residuais, as necessidades e prioridades de comunicação do indivíduo, além dos recursos disponíveis.[10]Hillis AE, Heidler J. Contributions and limitations of the "cognitive neuropsychological approach" to treatment: illustrations from studies of reading and spelling therapy. Aphasiology. 2005;19:985-93. A terapia frequentemente aborda os processos cognitivos comprometidos subjacentes ao desempenho alterado das tarefas de linguagem do indivíduo. Às vezes, argumenta-se que a terapia intensiva (por exemplo, 5 dias por semana) costuma ser mais efetiva que a terapia menos intensiva, a menos que a pessoa seja capaz de praticar habilidades emergentes por conta própria, geralmente com a ajuda de um computador.[11]Bhogal SK, Teasell R, Speechley M. Intensity of aphasia therapy, impact on recovery. Stroke. 2003 Apr;34(4):987-93.
https://www.ahajournals.org/doi/10.1161/01.STR.0000062343.64383.D0
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12649521?tool=bestpractice.com
[12]Brady MC, Kelly H, Godwin J, et al. Speech and language therapy for aphasia following stroke. Cochrane Database Syst Rev. 2016;(6):CD000425.
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD000425.pub4/full
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27245310?tool=bestpractice.com
Entretanto, a dose (número de sessões) pode, na realidade, ser mais importante que a intensidade.[13]Cherney LR, Patterson JP, Raymer A, et al. Evidence-based systematic review: effects of intensity of treatment and constraint-induced language therapy for individuals with stroke-induced aphasia. J Speech Lang Hear Res. 2008 Oct;51(5):1282-99.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18812489?tool=bestpractice.com
A fonoterapia pode melhorar significativamente a comunicação funcional, a compreensão e a produção da fala.[12]Brady MC, Kelly H, Godwin J, et al. Speech and language therapy for aphasia following stroke. Cochrane Database Syst Rev. 2016;(6):CD000425.
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In people with aphasia following stroke, how does the use of speech and language therapy affect outcomes?/cca.html?targetUrl=https://cochranelibrary.com/cca/doi/10.1002/cca.1384/fullMostre-me a resposta De forma alternativa, os cuidadores podem ser treinados pelo fonoaudiólogo para proporcionar uma prática efetiva.[14]Aten JL, Caligiuri MP, Holland AL. The efficacy of functional communication therapy for chronic aphasic patients. J Speech Hear Disord. 1982 Feb;47(1):93-6.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/7176583?tool=bestpractice.com
A terapia pode ser suplementada com medicamentos, como memantina ou donepezila, ou com estimulação transcraniana por corrente contínua.[15]Berube S, Hillis AE. Advances and innovations in aphasia treatment trials. Stroke. 2019 Oct;50(10):2977-84.
https://www.doi.org/10.1161/STROKEAHA.119.025290
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/31510904?tool=bestpractice.com
[16]Saxena S, Hillis AE. An update on medications and noninvasive brain stimulation to augment language rehabilitation in post-stroke aphasia. Expert Rev Neurother. 2017 Nov;17(11):1091-1107.
https://www.doi.org/10.1080/14737175.2017.1373020
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28847186?tool=bestpractice.com
[17]Elsner B, Kugler J, Pohl M, et al. Transcranial direct current stimulation (tDCS) for improving aphasia in adults with aphasia after stroke. Cochrane Database Syst Rev. 2019 May 21;5:CD009760.
https://www.doi.org/10.1002/14651858.CD009760.pub4
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/31111960?tool=bestpractice.com
Ensaios clínicos randomizados e controlados mais amplos são necessários para determinar se essas intervenções têm algum benefício significativo sobre a fonoterapia isolada.