Resumo
Dispepsia é um sintoma ou uma combinação de sintomas que alerta o médico quanto à presença de um problema do trato gastrointestinal superior. Os sintomas típicos incluem dor ou queimação epigástrica, saciedade precoce e preenchimento pós-prandial, eructação, distensão abdominal, náuseas ou desconforto na parte superior do abdome. Os sintomas são o foco central dessa avaliação; por isso, é essencial que sejam descritos de um modo que seja relevante para os pacientes.[1]Vakil NB, Halling K, Becher A, et al. Systematic review of patient-reported outcome instruments for gastroesophageal reflux disease symptoms. Eur J Gastroenterol Hepatol. 2013 Jan;25(1):2-14. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23202695?tool=bestpractice.com
Os médicos que usam uma avaliação baseada em sintomas para avaliar o trato gastrointestinal superior precisam estar cientes da incerteza inerente ao diagnóstico nessa abordagem. Essas avaliações podem fornecer diagnósticos preliminares funcionais, mas sempre há um perigo de erro na classificação. Uma consequência importante da incapacidade de fazer um diagnóstico definitivo com base somente nos sintomas é o excesso de diagnósticos de doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) e pouco conhecimento da doença relacionada a Helicobacter pylori. A reavaliação periódica pode adicionar uma camada de segurança, mas o tempo e a frequência da reavaliação precisam ser individualizados.[2]World Gastroenterology Organisation. World Gastroenterology Organisation global guidelines: coping with common GI symptoms in the community. May 2013 [internet publication]. http://www.worldgastroenterology.org/guidelines/global-guidelines/common-gi-symptoms/common-gi-symptoms-english
A nomenclatura para dispepsia é confusa. Isso ocorre principalmente porque algumas organizações médicas incluem todos os sintomas do trato gastrointestinal superior no termo dispepsia, em seguida separam os pacientes com sintomas sugestivos de DRGE para o manejo adequado, enquanto outros reconhecem a sobreposição dos sintomas entre as várias causas dos sintomas do trato gastrointestinal superior, mas optam por separar os sintomas sugestivos de DRGE antes de aplicar o termo dispepsia. Ambas as abordagens recomendam identificar os pacientes cujos sintomas sugiram DRGE e manejá-los como tendo a doença do refluxo.
O American College of Gastroenterology e a Canadian Association of Gastroenterology publicaram diretrizes conjuntas para o manejo da dispepsia.[3]Moayyedi PM, Lacy BE, Andrews CN, et al. ACG and CAG clinical guideline: management of dyspepsia. Am J Gastroenterol. 2017 Jul;112(7):988-1013. https://journals.lww.com/ajg/fulltext/2017/07000/ACG_and_CAG_Clinical_Guideline__Management_of.10.aspx http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28631728?tool=bestpractice.com A definição operacional de dispepsia utilizada na diretriz é dor epigástrica predominante. Os autores reconhecem que os pacientes podem apresentar náuseas, vômitos ou preenchimento, mas, uma vez que a principal preocupação dos pacientes é a dor epigástrica, eles devem ser tratados como pacientes portadores de dispepsia.
A revisão técnica da American Gastroenterological Association para a avaliação da dispepsia exclui os pacientes com sintomas que sugerem DRGE e inclui apenas os pacientes com sintomas típicos.[4]Talley NJ, Vakil NB, Moayyedi P. AGA technical review: evaluation of dyspepsia. Gastroenterology. 2005 Nov;129(5):1756-80. http://www.gastrojournal.org/article/S0016-5085%2805%2901818-4/fulltext http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16285971?tool=bestpractice.com O American College of Gastroenterology publicou orientações separadas sobre o diagnóstico e o tratamento da DRGE, a qual exclui o tratamento da pirose funcional e de outros sintomas funcionais do sistema gastrointestinal superior.[5]Katz PO, Dunbar KB, Schnoll-Sussman FH, et al. ACG clinical guideline for the diagnosis and management of gastroesophageal reflux disease. Am J Gastroenterol. 2022 Jan 1;117(1):27-56. https://journals.lww.com/ajg/fulltext/2022/01000/acg_clinical_guideline_for_the_diagnosis_and.14.aspx http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/34807007?tool=bestpractice.com A diretriz do National Institute for Health and Care Excellence do Reino Unido sobre DRGE e dispepsia em adultos sugere um algoritmo distinto para os pacientes com sintomas típicos de DRGE.[6]National Institute for Health and Care Excellence. Gastro-oesophageal reflux disease and dyspepsia in adults: investigation and management. Oct 2019 [internet publication]. http://www.nice.org.uk/guidance/cg184
Classificação da dispepsia
Pacientes com dispepsia podem ser classificados com base no tipo ou nos desfechos das investigações efetuadas. Os trabalhos de pesquisa frequentemente vão se referir a diferentes categorias de pacientes com dispepsia; por isso é importante entender as descrições dos subgrupos mais comuns de pacientes com dispepsia que foram apresentadas.
A dispepsia não investigada é classificada como uma afecção com sintomas característicos clinicamente avaliados como sendo originários do trato gastrointestinal superior, mas que não foram recentemente investigados pela endoscopia digestiva alta.[3]Moayyedi PM, Lacy BE, Andrews CN, et al. ACG and CAG clinical guideline: management of dyspepsia. Am J Gastroenterol. 2017 Jul;112(7):988-1013. https://journals.lww.com/ajg/fulltext/2017/07000/ACG_and_CAG_Clinical_Guideline__Management_of.10.aspx http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28631728?tool=bestpractice.com [4]Talley NJ, Vakil NB, Moayyedi P. AGA technical review: evaluation of dyspepsia. Gastroenterology. 2005 Nov;129(5):1756-80. http://www.gastrojournal.org/article/S0016-5085%2805%2901818-4/fulltext http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16285971?tool=bestpractice.com [6]National Institute for Health and Care Excellence. Gastro-oesophageal reflux disease and dyspepsia in adults: investigation and management. Oct 2019 [internet publication]. http://www.nice.org.uk/guidance/cg184 Os sintomas incluem dor ou queimação epigástrica, saciedade precoce e plenitude pós-prandial, eructação, distensão abdominal, náuseas ou desconforto na região superior do abdome.
A dispepsia funcional (às vezes chamada de dispepsia não ulcerativa) refere-se a uma situação onde investigações não revelaram uma potencial causa para a dispepsia.[7]Black CJ, Paine PA, Agrawal A, et al. British Society of Gastroenterology guidelines on the management of functional dyspepsia. Gut. 2022 Sep;71(9):1697-723. https://gut.bmj.com/content/71/9/1697.long http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/35798375?tool=bestpractice.com Ela é geralmente reservada para os pacientes com endoscopia normal cujos sintomas não sugerem DRGE. Dizz-se que os pacientes de DRGE com endoscopia normal têm doença do refluxo não erosiva.[3]Moayyedi PM, Lacy BE, Andrews CN, et al. ACG and CAG clinical guideline: management of dyspepsia. Am J Gastroenterol. 2017 Jul;112(7):988-1013. https://journals.lww.com/ajg/fulltext/2017/07000/ACG_and_CAG_Clinical_Guideline__Management_of.10.aspx http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28631728?tool=bestpractice.com [4]Talley NJ, Vakil NB, Moayyedi P. AGA technical review: evaluation of dyspepsia. Gastroenterology. 2005 Nov;129(5):1756-80. http://www.gastrojournal.org/article/S0016-5085%2805%2901818-4/fulltext http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16285971?tool=bestpractice.com [5]Katz PO, Dunbar KB, Schnoll-Sussman FH, et al. ACG clinical guideline for the diagnosis and management of gastroesophageal reflux disease. Am J Gastroenterol. 2022 Jan 1;117(1):27-56. https://journals.lww.com/ajg/fulltext/2022/01000/acg_clinical_guideline_for_the_diagnosis_and.14.aspx http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/34807007?tool=bestpractice.com [8]Vakil N, van Zanten SV, Kahrilas P, et al. The Montreal definition and classification of gastroesophageal reflux disease: a global evidence-based consensus. Am J Gastroenterol. 2006 Aug;101(8):1900-20. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16928254?tool=bestpractice.com O American College of Gastroenterology recomenda que o diagnóstico de doença do refluxo não erosiva só seja feito se a endoscopia for realizada com o paciente sem estar tomando inibidores da bomba de prótons.[5]Katz PO, Dunbar KB, Schnoll-Sussman FH, et al. ACG clinical guideline for the diagnosis and management of gastroesophageal reflux disease. Am J Gastroenterol. 2022 Jan 1;117(1):27-56. https://journals.lww.com/ajg/fulltext/2022/01000/acg_clinical_guideline_for_the_diagnosis_and.14.aspx http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/34807007?tool=bestpractice.com
A classificação de Roma IV subdivide a dispepsia funcional em 3 categorias:[9]Stanghellini V, Chan FK, Hasler WL, et al. Gastroduodenal disorders. Gastroenterology. 2016 May;150(6):1380-92. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27147122?tool=bestpractice.com
Síndrome do desconforto pós-prandial (SDP), que é caracterizada por sintomas dispépticos induzidos pela refeição, como desconforto, dor, náusea e preenchimento
Síndrome da dor epigástrica (SDE), que se refere à dor epigástrica, ou queimação epigástrica, que não ocorre exclusivamente pós-prandialmente, pode ocorrer durante o jejum e pode até mesmo melhorar com a ingestão de alimento
Superposição de SDP e SDE, que é caracterizada por sintomas dispépticos induzidos pela refeição e dor ou queimação epigástrica.
A DRGE e a dispepsia estão relacionadas e podem se sobrepor. Não há padrão ouro para o diagnóstico de DRGE. O diagnóstico é baseado na combinação da apresentação sintomática, avaliação endoscópica da mucosa esofágica, monitoramento do refluxo e resposta à intervenção terapêutica.[5]Katz PO, Dunbar KB, Schnoll-Sussman FH, et al. ACG clinical guideline for the diagnosis and management of gastroesophageal reflux disease. Am J Gastroenterol. 2022 Jan 1;117(1):27-56. https://journals.lww.com/ajg/fulltext/2022/01000/acg_clinical_guideline_for_the_diagnosis_and.14.aspx http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/34807007?tool=bestpractice.com Sabe-se que muitos pacientes com DRGE terão apresentações atípicas, como queimação ou dor epigástrica, e, portanto, os sintomas farão com que sejam colocados no grupo de pacientes com dispepsia não investigada. Entre aqueles submetidos a endoscopias por sintomas típicos de DRGE, a mucosa normal é o achado mais comum.[5]Katz PO, Dunbar KB, Schnoll-Sussman FH, et al. ACG clinical guideline for the diagnosis and management of gastroesophageal reflux disease. Am J Gastroenterol. 2022 Jan 1;117(1):27-56. https://journals.lww.com/ajg/fulltext/2022/01000/acg_clinical_guideline_for_the_diagnosis_and.14.aspx http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/34807007?tool=bestpractice.com
A extensão ou gravidade da dispepsia do paciente é medida pelo relatório do paciente sobre o impacto dos sintomas na sua qualidade de vida e funções. A avaliação da gravidade da dispepsia do paciente geralmente refere-se ao grau em que afeta o trabalho, o sono, a alimentação ou o lazer.[4]Talley NJ, Vakil NB, Moayyedi P. AGA technical review: evaluation of dyspepsia. Gastroenterology. 2005 Nov;129(5):1756-80. http://www.gastrojournal.org/article/S0016-5085%2805%2901818-4/fulltext http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16285971?tool=bestpractice.com [6]National Institute for Health and Care Excellence. Gastro-oesophageal reflux disease and dyspepsia in adults: investigation and management. Oct 2019 [internet publication]. http://www.nice.org.uk/guidance/cg184
Epidemiologia
Uma metanálise de estudos que avaliaram a prevalência de dispepsia não investigada de acordo com os critérios de Roma descobriu que a prevalência variou entre os países, sugerindo que influências ambientais, culturais, étnicas, alimentares ou genéticas desempenham um papel.[10]Barberio B, Mahadeva S, Black CJ, et al. Systematic review with meta-analysis: global prevalence of uninvestigated dyspepsia according to the Rome criteria. Aliment Pharmacol Ther. 2020 Sep;52(5):762-73. https://eprints.whiterose.ac.uk/165990 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/32852839?tool=bestpractice.com A prevalência combinada de dispepsias não investigadas foi de 6.9% (IC de 95%: 5.7% a 8.2%) nos estudos que definiram dispepsia não investigada de acordo com os critérios de Roma IV e 17.6% (IC de 95%: 9.8% a 27.1%) nos estudos que utilizaram os critérios de Roma I. A prevalência de dispepsia não investigada foi 1.5 vezes maior em mulheres.[10]Barberio B, Mahadeva S, Black CJ, et al. Systematic review with meta-analysis: global prevalence of uninvestigated dyspepsia according to the Rome criteria. Aliment Pharmacol Ther. 2020 Sep;52(5):762-73. https://eprints.whiterose.ac.uk/165990 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/32852839?tool=bestpractice.com
Uma pesquisa em saúde transversal na Internet constatou que a dispepsia funcional Rome IV é muito mais prevalente nos EUA (232 [12%] de 1949 respostas) do que no Canadá (167 [8%] de 1988 respostas) e no Reino Unido (152 [8%] de 1994 respostas; p<0·0001).[11]Aziz I, Palsson OS, Törnblom H, et al. Epidemiology, clinical characteristics, and associations for symptom-based Rome IV functional dyspepsia in adults in the USA, Canada, and the UK: a cross-sectional population-based study. Lancet Gastroenterol Hepatol. 2018 Apr;3(4):252-62. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29396034?tool=bestpractice.com A distribuição de subtipo foi 61% de síndrome do desconforto pós-prandial, 18% de síndrome da dor epigástrica e 21% de variante sobreposta com as duas síndromes; este padrão foi similar entre os países.
Há evidências de questões particulares relacionadas à dispepsia funcional nas mulheres.[12]Flier SN, Rose S. Is functional dyspepsia of particular concern in women? A review of gender differences in epidemiology, pathophysiologic mechanisms, clinical presentation, and management. Am J Gastroenterol. 2006 Dec;101(12 Suppl):S644-53. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17177870?tool=bestpractice.com Foi mostrado que a dispepsia tem um impacto negativo significativo na qualidade de vida. O impacto se refere a alterações no sono, dieta e interferência nas atividades de trabalho e lazer. Mulheres que sofreram abuso emocional ou físico parecem ser particularmente vulneráveis a desenvolver sintomas da dispepsia e síndrome do intestino irritável (SII).
Há muita sobreposição entre dispepsia funcional e SII. Os pacientes com os dois distúrbios têm uma carga e sintomas muito maior e são mais propensos a consultar um médico.[13]Vakil N, Stelwagon M, Shea EP, et al. Symptom burden and consulting behavior in patients with overlapping functional disorders in the US population. United European Gastroenterol J. 2016 Jun;4(3):413-22. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4924424 http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/27403308?tool=bestpractice.com
Diagnósticos diferenciais
comuns
- Dispepsia funcional
- infecção por Helicobacter pylori
- DRGE e esofagite
- Úlcera péptica
- Gastroparesia
- Gastrite e duodenite com e sem erosões
- Intolerância à lactose
- Colelitíase
- Colecistite
- Dispepsia induzida por medicamento
- Doença celíaca
Incomuns
- Neoplasia do trato gastrointestinal superior
- Parasitas intestinais: giárdia, Cryptosporidium
- Doença arterial coronariana (DAC)
- Pancreatite crônica
- Pancreatite aguda
- Tumores/cânceres de pâncreas
- Obstrução do trato hepatobiliar resultante de estenose ou tumor
- Hipercalcemia
- Dor na parede abdominal
Colaboradores
Autores
Nimish Vakil, MD, FACP, AGAF, FASGE, FACG
Clinical Adjunct Professor
School of Medicine and Public Health
University of Wisconsin
Madison
WI
Declarações
NV is a consultant for Phathom Pharmaceuticals and Redhill Pharmaceuticals, and is an author of several references cited in this topic.
Agradecimentos
Dr Nimish Vakil would like to gratefully acknowledge Dr Nigel W. Flook, a previous contributor to this topic.
Declarações
NWF declares that he has no conflicting interests.
Revisores
Lars Aabakken, MD
Professor of Medicine
Chief of GI Endoscopy
Rikshospitalet University Hospital
Oslo
Norway
Declarações
LA declares that he has no competing interests.
Marc Bradette, MD, FRCP(C)
Gastroenterologist
Chief of Service
Hôpital Hôtel-Dieu de Québec
Centre Hospitalier Universitaire de Québec
Québec City
Québec
Canada
Declarações
MB declares that he has no competing interests.
Paul Moayyedi, BSc, MB ChB, PhD, MPH, FRCP (London), FRCPC, FACG, AGAF
Director
Division of Gastroenterology
Professor
Department of Medicine
McMaster University Medical Centre
Hamilton
Ontario
Canada
Declarações
PM is an author of a number of references cited in this topic.
Diretrizes
- Guidelines on the management of functional dyspepsia
- Diagnosis and management of gastroesophageal reflux disease
Mais DiretrizesFolhetos informativos para os pacientes
Constipation in adults
Heartburn
Mais Folhetos informativos para os pacientes- Conectar-se ou assinar para acessar todo o BMJ Best Practice
O uso deste conteúdo está sujeito ao nosso aviso legal